O sertão do Nordeste e o deserto do Saara já foram verdes

Evidências paleoclimáticas e arqueológicas nos dizem que, entre 5 e 11 mil anos atrás, a lenta 'oscilação' orbital da Terra transformou o atual deserto do Saara em uma terra coberta por vegetação e lagos. O mesmo pode ter acontecido com a caatinga brasileira.

nordeste verde
Mudanças na insolação e no clima ao longo dos últimos 10 mil anos devem ter moldado as paisagens atuais na América do Sul e na África.

A rotação axial da Terra é perturbada por interações gravitacionais com a lua e os planetas mais massivos que, juntos, induzem mudanças periódicas na órbita da Terra, incluindo um ciclo de 100.000 anos na forma da órbita (excentricidade), um ciclo de 41.000 anos na inclinação de o eixo da Terra (obliquidade) e um ciclo de 20.000 anos na "oscilação" - bem como uma oscilação superior - do eixo da Terra (precessão).

Todos os três ciclos orbitais - chamados de ciclos de Milankovitch - impactam o clima africano em longas escalas de tempo geológicas, mas o ciclo com maior influência nas chuvas na África é o ciclo de "oscilação", precessão. O principal efeito climático da precessão é mudar a estação em que a Terra tem sua passagem mais próxima do Sol (periélio) - a chamada precessão dos equinócios. Hoje, o periélio ocorre no inverno do hemisfério norte, mas a 10.000 anos atrás (metade de um ciclo de precessão) ocorreu no verão do hemisfério norte, e a radiação do verão sobre o norte da África foi cerca de 7% mais alta do que é hoje (Berger, 1988).

Para conhecer os efeitos das variações da insolação sobre o clima global, Cruz (geólogo do Instituto de Geociências da USP) trabalhou com o físico alemão Michael Deininger, da Universidade de Mainz, na Alemanha. Com suas equipes, eles examinaram as abundâncias entre isótopos de carbono, oxigênio e estrôncio em 37 registros de variações climáticas registradas em minerais de estalagmites e a composição química de sedimentos de lagos e de oceanos. A maior abundância, por exemplo, da forma mais pesada de oxigênio (O18) sobre a mais comum (O16) é uma indicação de chuvas frequentes.

As análises indicaram que uma maior insolação deve ter incidido sobre a região tropical – ao largo do equador – do hemisfério norte entre 10 mil e 6 mil anos atrás. Quanto maior a insolação, mais altas as temperaturas sobre a superfície terrestre e mais quentes e agitadas as massas de ar que circulam na alta atmosfera, trazendo mais chuva a uma região e, inversamente, menos em outra.

Até 6 mil anos atrás, o clima nas regiões onde hoje estão Mali, Senegal e outros países da África subsaariana era úmido.

Nesse período, chovia mais na África, alimentando florestas, lagos, animais e populações humanas que ocuparam as atuais bordas do deserto do Saara, então cerca de 40% menor.

Efeitos opostos

No hemisfério que recebe mais calor em razão da inclinação do eixo da Terra, a circulação de massas de ar úmido se intensifica, aumentando a precipitação. No outro hemisfério, a insolação é menor e as chuvas, mais escassas, principalmente no verão, quando entra menos umidade dos oceanos para o continente.

Nesse estudo, os pesquisadores mostraram como a inclinação do eixo da Terra pode modificar a circulação de massas de ar da camada mais baixa da atmosfera em todo o planeta, incluindo as de clima temperado da Europa. Desse modo, enquanto as florestas da região central da África vicejavam, formando o chamado Saara verde, as regiões de latitudes médias como a Europa passavam por períodos de seca. O clima mais seco também perdurou na maior parte do Brasil, incluindo a Amazônia, entre 10 mil e 6 mil anos atrás, de acordo com o artigo publicado na Nature Communications.

O início do clima semiárido

Há cerca de 4.200 anos o clima deve ter se estabilizado e as chuvas escassearam na região Nordeste do Brasil, estabelecendo o atual clima semiárido, concluiu a bióloga Giselle Utida da USP. Ela chegou a essa inferência após examinar as proporções de isótopos de elementos químicos de estalagmites de cavernas que Cruz havia visitado ao longo de 10 anos e do material colhido em outras quatro no Rio Grande do Norte.

A partir de 4.200 anos atrás, as espécies tropicais começaram a rarear e as que hoje são típicas da Caatinga a predominar, indicando que esse seria o início do clima semiárido na região Nordeste.

Às análises iniciais de carbono e oxigênio ela acrescentou as de estrôncio, extraído do solo e de estalagmites de cavernas. “A abundância de estrôncio do solo foi maior entre 10 mil e 5 mil anos, indicando que chuvas frequentes foram responsáveis pela erosão intensa e pelo transporte dos sedimentos para o interior das cavernas”, diz ela. Com menos chuva, formou-se menos solo e, consequentemente, menos sedimentos escorriam para as cavernas.

Percorrendo a região, ela encontrou árvores apenas com as copas saindo da superfície do solo; a raiz e o tronco estavam dentro da caverna, onde ainda havia solo fértil. “O clima árido se estabeleceu também no norte da África, ampliando o deserto do Saara, no Mediterrâneo e no Oriente Médio”, diz. “São mudanças globais, que afetam cada região diferentemente, mas com uma origem comum: a variação da insolação.”